Voltámos uma vez mais aos Picos da Europa, desta vez com o Mototurismo do Centro. Foram quatros dias vividos intensamente, com excelente companhia e a benção do São Pedro, num dos cenários mais bonitos de montanha.
A excelente crónica da Rita Vargas que nos companhou neste passeio, conta-nos como foram estes dias muito bem passados nos Picos da Europa.
Mototurismo do Centro e outros Forasteros
08h, manhã de quinta-feira. Taveiro, sede do Mototurismo do Centro.
Há muito que não se via tanta moto junta por aquelas paragens. 51 motociclistas cheios de genica preparavam-se para 4 dias de muitos e muitos quilómetros.
Destino: Picos da Europa. Uma viagem nas alturas, pelo berço de Espanha.
1º dia:
O sol espreitava tímido, mas as núvens carregadas de negro pareciam querer levar a melhor. Vestidos a rigor, fizemo-nos à estrada, prontos a enfrentar a cordilheira de altas montanhas que nos esperava do lado de lá da fronteira.
Poucos quilómetros percorridos e a chuva deu os primeiros ares da sua "desgraça".
Apesar do frio, era delicioso ver as numerosas motos estenderem-se pelo asfalto. Uma, outra e outra e mais uma e mais outra…
Soube bem a nossa primeira paragem. O Clube Motard de chaves não poderia ter-nos recebido melhor. Saborosos Pastéis e Folares de Chaves aguardavam por nós no coreto da bonita Praça de Camões. Foi tempo de retemperar forças, mas também das primeiras brincadeiras entre os amigos. Papel higiénico em antenas, óculos desproporcionais no rosto de mulheres bonitas, fotos, prémios, abraços, regaços, leite achocolatado, 7up e cerveja. Nada faltou.
Recuperados, animados, comidos, divertidos, ignorámos a chuva e voltámos à estrada. O lado de lá já estava muito perto…
Quilómetros, chuva, chuva, quilómetros e mais chuva. Numa breve paragem ficámos a saber. Com tanta chuva, não seria possível almoçar no Parque das Merendas de San Isidro. Mas "motero" que é "motero", tem amigos "moteros" em todo o lado, e quem tem amigos nunca fica a pé.
Pepe recebeu-nos na "La Pradera" com toda a pompa e circunstância: o ambiente quente e simples que todo o motociclista aprecia. Estava na hora das primeiras acrobacias no minúsculo Wc. E estava na hora do nosso improvisado picnic. Fiquei doida com a categoria deste picnic. A céu coberto, com pratos e talheres e comida caseira trazida de casa e bolo de cenoura e chocolate feito pela Primeiríssima Dama. Em nada parecido com o meu panado em sandes. Para a próxima tenho de me esmerar. Esta gente afinal não brinca em serviço! Ou é almoço, ou não é. E era!
Encorajados de novo, e motociclistas que éramos, fizemo-nos de novo à estrada. A chuva sempre como companhia. Os quilómetros iam ficando para trás, mas a chuva parecia cair sempre no quilómetro seguinte. Seria possível tal coisa??
O calor abandonou-nos e o frio tomou o seu lugar. Uns kms mais à frente, gelaram os pés. Mais uns kms e gelaram as mãos. Depois foi o rabo. Ficou duro como pedra. Depois os joelhos, depois as pernas e o pescoço, e quando já havíamos perdido e gelado tudo, chegámos ao nosso primeiro destino. A lindíssima vila de Arenas de Cabrales.
Finalmente! Um banho quente e um jantar e já nem parecíamos os mesmos. Já eramos gente! Risadas, brindes, festa. Um sorteio, e o prémio logo calhou ao nosso sócio fundador. Fotografias, sidra e bruxas. Sim, bruxas! Houve quem beijasse a dita bruxa que nos olhava imóvel, estarrecida de espanto com tanta ousadia. Feia como só as bruxas sabem ser. E claro, não podia faltar o pezinho de dança. Já viram a dança sexy do Nuno Letra? E do Silva? De fugir…
E fugimos. Sob a sombra tutelar do Pico de Urriellu. Cada um para o seu quarto.
2º dia:
Trim. Trim. Ouvi. Longe. Tão longe…
Trim, trim. Insistente. Perto. Cada vez mais perto.
Trim, trim. Até que um neurónio antes adormecido fez-me luz: Alvorada! Jááá??
Num pulo, alcanço a janela e deixo o ar entrar. Frio. Chuvoso. Outra vez.
Bem, lá terá que ser. Banho quente, 2 camisolas e desço para o pequeno-almoço. Não há bacon, nem ovos, nem cereais, nem fruta. Quem veio à procura do tradicional pequeno-almoço americano ou continental enganou-se na terra. Aqui há pequeno-almoço de pacotinhos. Pacotinho de bolachas, pacotinho de manteiga, pacotinho de palmiers, pacotinhos de marmelada, pacotinho de bolo seco, pacotinho de açúcar, pacotinho disto, pacotinho daquilo. Nunca vi tanto pacotinho junto! Bem, lá terá que ser. Dois ou três pacotinhos e estou pronta. Tempo de nos fazermos à estrada.
Percorremos uma das muitas rotas do Caminho de Santiago. Tudo é verde e rústico e bucólico. Tudo é nevoeiro e chuva e lindo. Vêem-se peregrinos aqui e além. Vêem-se aves de rapina e cavalos, ovelhas e cabras de montanha e vacas atravessarem-se no nosso caminho.
Miradouro natural de Naranjo de Bulnes, Sotres (capital da comarca), Potes… A chuva era tanta que os fatos impermeáveis não resistiram. Ao almoço, o item mais requisitado foi o secador de cabelo. Fraca tentativa de secar as luvas e as camisolas! Mas que bem que soube aquela espécie de canja…
Há 40 anos que não chovia assim, dizem-nos. Mas só assim foi possível ver as inúmeras cascatas e quedas de água ao longo do caminho. A paisagem é deslumbrante.
Chegamos a Fuente Dé. Aqui o teleférico parte de uma base de 800m e em rápidos 3 minutos sobe aos 1834m. Aquela pequena caixa azul/vermelha segue numa vertiginosa ascensão de 1km, até a um miradouro que fez os mais corajosos sentir o mundo a seus pés. E estava. O mundo dos medricas como eu lá em baixo!
Hora de regresso. Banho quente para recuperar os movimentos e iguarias no local habitual. Desta vez, uma surpresa. O nosso amigo Silva fez anos. Tivemos bolo e champanhe. E "Parabéns a você" cantado em espanhol. Tivemos velas e sorrisos e abraços e… Sidra. Tanta Sidra, meu Deus!
Todos, sem excepção, aprendemos a oxigenar a Sidra! De frente, de lado, de costas. De olho no copo ou de olho na garrafa. Tudo aprendeu a oxigenar a Sidra. Cada um à sua maneira. Mas tudo oxigenou e bebeu. Menos eu!
3º dia:
Chuva. Outra vez??? Pode lá ser! Mas podia. Mais um banho quente, mais duas camisolas e lá vou eu! Mais dois, três pacotinhos e lá vamos nós! Directos ao Mirador de La Reina e a Covadonga. A reconquista da Península Ibérica aos mouros começou aqui.
A Basílica de Covadonga anuncia-se entre o nevoeiro. Linda. Imponente. Estendemos ordenadamente as nossas motos em redor e fomos à exploração. O interior deste lindo palacete é um deleite para os olhos. Entramos com o pé direito e fazemos o primeiro pedido. Segundo a tradição (ou superstição, vai-se lá saber), quando se entra pela primeira vez numa igreja devemos fazer um pedido. E fizemos. Eu fiz.
Há uma paz que nos invade em locais míticos como este. E há encontros imediatos de quase quase terceiro grau. Chegam umas quantas motos. Coincidência das coincidências, são portugueses! De Alverca! Não é que estamos mesmo em todo o lado??
Mas isto nada se comparava ao que ainda estava por vir. À saída da Basílica, somos saudados por Pelágio. Reza a História que, em 722, embora em inferioridade numérica, Pelágio sentiu as forças duplicarem quando, vinda dos céus, surgiu a Virgem anunciando a vitória das cores cristãs. Pelágio combateu bravamente com a espada numa mão e uma cruz de madeira na outra, e a prometida vitória aconteceu. Esta cruz de madeira foi posteriormente revestida de ouro e pedras preciosas e guardada como relíquia. Hoje, a Cruz da Vitória é o símbolo oficial das Astúrias.
Na gruta onde lhe surgiu a visão celestial, Pelágio mandou erigir um monumento. Uma pequena capela incrustada na ladeira rochosa e a imagem de Nossa Senhora. Santa Cueva é, pois, lugar de romaria e de peregrinação.
Dizem-me que quem ali vai, casa. Corri como uma louca, galguei os degraus quase sem fôlego, deixei uma moeda de 1€ (será que chega??) e beijei a mão de Nossa Senhora. Pronto. Desta é que é! Ou não é?
Resolvi perguntar a uma devota local. Afinal, era preciso beber da água de uma fonte sagrada que se encontrava por baixo desta gruta, mesmo por detrás de uma cascata. Oh meu Deus! Mais uma prova a ultrapassar! Corri. Desci. E estaquei. Imóvel. Incrédula. Frente a frente com a cascata comecei a gritar: "O quê?? Ali?? Nem pensar!"…
"JA" passa por mim seguro, experiente, e encoraja-me a avançar. Fui. Atrás dele percorri um ladeiro escorregadio de pedras irregulares. A cascata cada vez mais perto. Tão perto que se lhe podia chegar com a mão. Por fim, a prometida Fonte Sagrada. Bebi o que pude daquela água. E voltei a fazer o caminho de volta a terra firme. Consegui. Encharcada dos pés à cabeça. Mas consegui. Desta é que é! Ou não é?
Em terra firme fiquei a saber. Houve quem bebesse desta água para fazer crescer o cabelo. Houve quem bebesse para não perder os dentes e houve quem não soubesse porque bebia e quando descobriu, olhou para a namorada e disse "Tou feito!".
Mas pior, muito pior do que tudo isto, foi descobrir que esta era a 7ª tentativa do "JA" àquele lugar mítico. A 7ª vez que bebia daquela água sagrada e nada! Afinal, quem estava feita era eu, bolas!
Altura de seguir viagem. Quilómetro após quilómetro, picos a perder de vista. Curva, contracurva, nichos rochosos a cada recanto. Chuva e mais chuva. A aventura ainda a começar.
Desfiladero de los Beyos. Agora era sempre a subir. A subir e a congelar. Não havia botas, meias ou camisolas. Não havia blusão, luvas ou impermeável que nos pudesse salvar. Agora era sempre a trepar.
Puertas del Infierno. Meu Deus, o nariz a congelar?? Sempre, sempre a trepar.
1280m altitude. El Pontón. Qual pontón?? O meu pontón ficou lá atrás!
1480m altitude. As pestanas a congelar?? Ainda tanto tanto a trepar.
Já nada mais havia para congelar!
Cordilheiras sucessivas erguem-se aos céus. Pontes e túneis escavados nas vertiginosas montanhas. Estradas estreitas de curvas, ganchos e cotovelos. De repente, um susto.
Um milésimo de segundo. Um xisquinho mais depressa, um cm mais à esquerda, e não teria sido apenas um susto. Pedras enormes rolam montanha abaixo. Caem um milésimo de segundo depois do Costa ter passado. Um cm mais depressa do que o carro de apoio. Um susto. E uma história para contar.
Posada de Valdeón. Entrámos no restaurante de andar esquisito e tacha arreganhada. Não de felicidade, mas porque o rosto havia congelado assim.
Lá dentro o ar era quente do aquecimento. O rosto roxo virou rosa e logo logo coradinho. Do frio fez-se o quente e logo logo a festa.
Vinho, pão, ensopado. Paella, costeleta, cordeiro e deliciosas sobremesas. Excepção feita ao famoso Queijo Cabrales. Sinceramente não percebo o porquê de tanta fama. Bolas que aquela coisa sabe mal como ó caraças!
Refeitos, abastecidos, e já aquecidos, enfrentámos nova estrada. Agora não havia frio ou chuva que nos pegasse! Em frente para Caín, comandante!
Caín. Aldeia remota e pitoresca, onde as casas são pequenas e baixinhas, cheias de flores coloridas nas janelas. As ruas estreitas e de pedra, convidam a um passeio a pé.
O cenário bucólico faz-nos abrir o coração. Hora de confissões. Na Fonte Sagrada dos desejos, parece ter havido quem apelasse a Santa cueva pela nossa protecção. Afinal aquele milésimo de segundo, aquele xisquinho mais à esquerda, aquele cm mais depressa não fora mero acaso. Afinal, havia mão divina naquele susto. Seria possível?? Haver esperança para mim e para o JA?? E para todos os que precisam de mais cabelo e de não perder os dentes? Seria possível??
E para a prosperidade, uma foto de cada um, bem coladinhos a uma monumental cascata. E assim chegámos a Cangas de Ónis.
Aqui tivemos outro encontro imediato de quase quase 3º grau. Desta vez com uma caravana de moto4. Verdes e encharcadas em lama. Ouviram-se buzinas e cumprimentos e as pessoas na rua paravam a ver-nos passar. Foi festa.
Regresso ao hotel. Um banho quente e um manjar de deuses. Depois… Depois foi festa.
Os braços no ar, toda a gente a pular. Pares conhecidos, e desconhecidos a dançar. Todos com os braços no ar. O Silva com o casaco de um outro alguém. O Serralha a fazer o strip de superman. Sempre de braços no ar. Foi a sidra. Foi a loucura. Foi a festa. E que festa!
4º e último dia:
07h da manhã. Tempo de banho quente e de fazer malas. Nada deve ficar esquecido.
08h da manhã. Tempo de carregar a moto e de tomar o último pequeno-almoço.
Chove. Mas os lábios sorriem perante os maravilhosos pacotinhos colocados na mesa.
A conversa recorda as peripécias da noite anterior. Ouvem-se gargalhas pela sala fora. A cumplicidade denuncia o ambiente vivido neste 4 dias. O grupo é já espécie de família.
E lá vamos nós. Novo dia de aventura. O último desta jornada.
O sol espreita. Espera lá… Sol?? Não pode ser… Mas era. O sol apareceu para nos saudar com uma paisagem diferente naquela mesma estrada de gargantas e cotovelos. Tudo diferente. Tão diferente…
Entramos em zona de longos e largos lagos. Nos pináculos das montanhas, estes espelhos de água testemunham a última glaciação. Estávamos em Riaño. Breve paragem para a última foto de grupo e mais uns Pastéis de Chaves.
Somos saudados por um helicóptero. Dizemos-lhe adeus. Uns metros mais à frente, lá estava ela. A Polícia espanhola apontava algumas matrículas. Nada que o nosso líder não resolvesse. Umas quantas beijocas e pronto. Polícia espanhola rendida.
Última paragem para um almoço em Zamora. O regresso foi feito por Mangualde. E na Barragem da Aguieira fizemos a despedida.
Beijocas para cá, abraços para lá. As últimas fotos, as últimas palavras… Ouvem-se palmas. Ouve-se o carinho envolvente. Ouve-se a alegria de uma experiência partilhada. Sabe-se não ter sido a última. Sente-se. Hoje todos juntos. Amanhã novamente.
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