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quinta-feira, 29 de março de 2018

Plantar é um acto de esperança e.. os forateiros e os carteiros


Plantar é um acto de esperança e.. os forateiros e os carteiros
A uns os cães ladram e a outros não.

Portugal é um país muito apetecível e procurado a nível turístico; e nós, maioritariamente urbanos, temos o privilégio de viver cá e de num simples fim-de-semana mudarmos completamente de ares e paisagens. Facilmente entramos noutras realidades, quase dimensionais. Temos esse privilégio, mas temos também a obrigação de tomar consciência dessas realidades, das diferenças que prevalecem no nosso país onde, em pleno século XXI, para muitos portugueses ainda é muito difícil simplesmente existir.

Não faltam ofertas de oportunidades para ir à descoberta dos encantos e recantos de Portugal; são muitas as organizações de eventos vocacionados para a prática do mototurismo, “on e off-road”. 

Durante esses eventos temos a oportunidade de nos aproximarmos de populações, algumas completamente isoladas e onde é difícil viver, onde tudo demora a chegar e de onde é difícil sair. Por norma, a viver nesses locais existe uma população idosa e triste, porque esquecida não só pelo Estado, mas também por filhos e netos. Há pessoas cujo único contacto com o exterior desse seu habitat é feito através do Carteiro que por lá passa e que mesmo não tendo carta para entregar, vai de porta em porta, para apenas se certificar que está tudo bem, ou não… também para entregar os remédios que trouxe da farmácia da vila, o recibo da luz que entretanto já pagou e mesmo até os eurozitos da misera pensão que levantou, porque a confiança no Carteiro também serve para isso. E depois segue o seu “giro” até à aldeia mais próxima, ou simples casario, onde tudo se repete, onde outros (cada vez menos) estão à sua espera e também em iguais condições, à mercê da vontade do destino… e o destino é por vezes muito cruel, porque em pleno sec. XXI o frio ainda é causa de morte em Portugal, porque temos os mais baixos rendimentos da Europa a que temos a veleidade de dizer que pertencemos e, ao mesmo tempo, a electricidade e o gás mais caros; e depois, sobrevivendo ao desconforto do frio de Inverno, vem o calor do Verão e com ele o perigo dos incêndios que ninguém controla. 


Na procura de trilhos e caminhos para o “Portugal Lés-a-Lés Off Road” do ano passado, encontrei aldeias que o fogo tinha queimado e a aflição que se viveu estava estampada no olhar apático e ombros descaídos dos que por lá continuavam; não caminhavam… deambulavam. Alguns tinham perdido todos os bens e outros até ente-queridos e estavam num estado psicológico muito abalado, diria mesmo que letárgico, como que à espera de acordarem um dia e concluírem que tudo não tinha passado de um enorme pesadelo, mas não… porque ao acordarem em cada manhã o cheiro a terra queimada e a paisagem enegrecida era um interminável “sonho mau”. Voltou-se a constatar este trauma social ainda recentemente, quando a federação andou pelo país ardido na sua campanha de “Reflorestar Portugal de Lés-a-Lés”; num desses locais, depois de entregues as centenas de árvores (castanheiros) que foram levadas e de todos se irem embora, uma idosa encolhida pelos anos e pela vida madrasta, ficou sozinha parada no meio da praça a olhar para o Ernesto e suscitou neste a curiosidade de se aproximar e fazer a circunstancial pergunta se necessitava de algo; a resposta, assim de chofre e ao mesmo tempo que lágrimas lhe começaram a escorrer pelas rugas do rosto, foi que o fogo lhe tinha matado o marido e ardido a casa… nada lhe restava como razão para viver, por isso, nem estava ali para levar plantas, porque plantar é um acto de esperança e ela há muito que a havia perdido… entre lágrimas, levou um demorado e caloroso abraço. Não sei se foi dado algum acompanhamento psicológico a estas populações mas, se não foi deveria ter sido, porque os traumas prevalecem e são causa de uma enorme e inconsolável dor existencial.

Nas aldeias e zonas rurais mais remotas, ser “Carteiro” nunca se restringiu à função de entregar cartas; nasci e fui criado numa aldeia assim… e numa época em que os índices de analfabetismo no nosso país ainda eram elevados; era o Carteiro que lia as cartas que vinham da guerra no ultramar e era ele também que depois escrevia as mensagens de saudade. Uma aldeia onde não havia electricidade nem torneiras de onde jorrasse água, onde os Invernos eram longos e frios… onde à noite o vento assobiava nas frestas das janelas, onde durante o dia as portas estavam sempre abertas e os cães não gostavam de forasteiros dando, por isso, o alarme quando algum se aproximava ainda ao longe. Mas ao Carteiro da minha aldeia nenhum cão ladrava… era alguém por quem toda a aldeia tinha grande consideração; ele conhecia e sabia o nome de toda a gente de todas as aldeias, sabia ler e escrever e, pensava eu então, até os cães respeitavam a farda que ele usava. Não havia alcatrão… o caminho de acesso à aldeia era íngreme e esburacado e ele vinha sempre com a bicicleta à mão, a suar no Verão e muitas vezes encharcado no Inverno. O Carteiro era assim estimado por todos e os “Correios” (CTT) uma instituição de grande e assumida utilidade para a sociedade, definitivamente, outros tempos… Mas ainda há Carteiros como o da minha aldeia, como antigamente, e que teimam em desenvolver uma importante função social em meios remotos; conheço um deles que, não por acaso, é motociclista; o Zé Fernando, do Góis Moto Clube. Gois, um concelho e uma região como tantas outras, devastada pelo fogo no ultimo ano e repleta de histórias de morte, de sobrevivência e de tristeza. É de uma aldeia sofrida de Góis a velhinha sem razão para viver e o Zé Fernando, muito possivelmente, é quem lhe houve os lamentos quando lhe passa à porta para entregar os remédios, ou só para ver se está tudo bem, só para isso… porque ninguém lhe escreve…

Quando passeamos e nos deliciamos por este encantador país, é nossa obrigação olharmos com olhos de ver para tudo o que nos rodeia, aperceber-nos daquilo que existindo ainda assim não é visível e compreendermos que os cães nos ladram porque somos forasteiros. 

Ser motociclista e fazer mototurismo é precisamente isso, ser forasteiro.
Tomanel

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