Festa escaldante na travessia de Portugal de Lés-a-Lés!
Inferno dos prazeres
O calor endureceu a maior aventura mototurística do Mundo, ampliando a exigência dos 1013 quilómetros do percurso e reforçando o carisma do 11.º Portugal de Lés-a-Lés/Moviflor. Que, em ambiente de festa, levou enorme e colorida caravana de Boticas até Olhão da Restauração, passando por Castelo Branco, com instantes de grande impacto visual, mesclando paisagens e monumentos com momentos de grande gozo de condução. Juntando, afinal, todos os prazeres do mototurismo!
Foi exigente mas cumprida com enorme regozijo pelas 403 equipas inscritas, a aventura proposta pela Comissão de Mototurismo da Federação de Motociclismo de Portugal. Monumental passeata através de um País de surpreendentes contrastes, alternando paisagens de cortar a respiração com a solenidade de monumentos que marcaram, de forma indelével, a História deste jardim à beira-mar plantado.
Uma viagem de descoberta que começou com um périplo pelas serranias do Barroso, um circuito pelas aldeias típicas do concelho de Boticas, em jeito de prólogo para a longa ligação até Olhão, delicioso aperitivo para a longa e bem disposta caravana de quase um milhar pessoas. Saboroso e servido bem quente, em antecipação à canícula que marcou fortemente a travessia à moda antiga de um País por tantos desconhecido, optando sempre pelas estradas nacionais, municipais e alguns caminhos de terra em detrimento das auto-estradas ou itinerários principais. Mantendo intacto, afinal, o espírito turístico e aventureiro de um evento que entrou na segunda década de existência!
Com partida e chegada a Boticas, a caravana deliciou-se com animada passeata de 93,8 quilómetros, que quebrou o isolamento de muitas das típicas aldeias do concelho transmontano. Da riqueza arquitectónica de Vilarinho Seco e dos arcos e varandas seculares de Atilhó até à bem preservada aldeia de Curros, uma das 16 sedes de freguesia botiquense, passando pelo largo e plano vale do Tâmega, albergando a conhecida veiga de Chaves, a quem nem os incêndios – que roubaram grande parte da verdura... – beliscaram a imponência.
Sempre bem acolhidos por um povo habituado às dificuldades e ao isolamento, os participantes liam sobre o famoso Vinho dos Mortos mas eram aconselhados a beber... muita água, passando, curiosamente, pelo primeiro dos três locais de engarrafamento de águas minero-medicinais, em Carvalhelhos. E que tem, ali bem perto, um castro do tempo da Idade do Ferro, com três fossos e outras tantas linhas de muralhas e pedras fincadas no exterior, para consolidação e acrescida capacidade defensiva.
Por lá andavam elementos do Moto Clube Unidos do Barroso, o primeiro dos 16 a entrar em acção no imprescindível apoio à organização, tanto nas diversas paragens ao longo do percurso como nos controlos de passagem onde é marcada a tarjeta que atesta o cumprimento de todo o passeio.
Tempo também para descobrir o forno comunitário de Covas do Barroso onde muitos foram surpreendidos com a oferta de pão acabadinho de cozer, bem como a majestosa paisagem granítica da subida até Vilarinho Seco, local de insuspeitável beleza, de uma grandiosidade histórica de cortar a respiração. Alturas do Barroso, a albufeira do Alto do Rabagão ou a medieval Ponte Pedrinha, sobre o rio Beça, foram outros dos atractivos deste arranque de festa, que encerrou o dia com uma tradicional chega de bois e, como nem podia deixar de ser, uma feijoada à transmontana em animado jantar.
1.ª etapa, Boticas –Meda – Castelo Branco
Rota histórica do Barroso à Beira raiana
Forma de retemperar energias para a primeira etapa, que cumpriu a promessa lançada à partida de ser das mais bonitas de sempre do Portugal de Lés-a-Lés. Longa de 412 quilómetros, atravessando o Douro vinhateiro e as Beiras, a rota histórica do Barroso à Beira raiana, começou cedo, com o arranque das primeiras equipas de Boticas desde as 7 horas, para 11 horas e meia de condução, com algumas, pequenas, paragens de permeio.
Como a visita à espectacular exploração aurífera do tempo dos romanos, minas a céu aberto trabalhados nos séculos I e II, em Trêsminas, onde elementos do Moto Clube do Corgo montaram guarda (romana...) a rigor. Antes ainda tempo para apreciar, uma vez mais, o rio Tâmega e passagem pelas Pedras Salgadas, mais uma localidade famosa pelas suas águas. Um saltinho até Murça onde o conhecido e eclético piloto de velocidade, ralis, todo-o-terreno e autocrosse, José Rodrigues foi atencioso anfitrião no cafezinho oferecido pela edilidade local, seguindo-se uma vista de olhos pela espectacular e controversa linha ferroviária do Tua, bem como por Linhares de Ansiães, localidade que já foi sede de concelho e se destaca por inusitada monumentalidade e onde os transmontanos do MC Mirandela aguardavam a comitiva de alicate em punho.
Acompanhando o Douro, destaque para a subida junto ao cachão da Valeira, um dos pontos mais bonitos do rio e onde a sua força indomável fez muitas vítimas antes da construção da barragem. A íngreme e longa subida ia também provocando abandonos entre os participantes, com a Chiang Jang 750, repartida pelos sempre divertidos Osvaldo Garcia e Torcato Santos, evidenciou problemas, com sobreaquecimento causado pelo consumo excessivo de óleo, obrigando mesmo a trabalhos forçados para empurrar o pesado side-car de origem chinesa. Uma réplica da BMW R71 que serviu na II Guerra Mundial e que deu ainda dores de cabeça na parte eléctrica e nos pneumáticos mas que acabaria por chegar até Olhão sem excessivas delongas.
Até ao almoço oferecido pela Câmara Municipal de Mêda, cidade de notável riqueza monumental, passagem por Ranhados com o seu fabuloso pelourinho e uma igreja de fachada bem original. Uma salada fria de bacalhau – excelente para combater o calor intenso - servida com o apoio do Hard Motards preparou os estômagos para o resto da viagem, com café servido a caminho de Marialva, em local ocupado pelos Aravos, tribo lusitana que combateu os romanos, e que foi posteriormente povoado à força por D. Afonso Henriques. E onde o Moto Clube do Porto montou interessante posto de controlo, recriando personagens da Idade Média, tal como os Moto Galos de Barcelos fizeram no Castelo de Vilar Maior. Entre os dois locais, a caravana passou ao lado da belíssima cidade de Pinhel, seguindo-se no mapa Malhada Sorda e a impressionante Igreja Matriz, com torre alta de 23 metros. Voltinhas que levaram quase quatro horas a cumprir, abrindo apetite para o lanche oferecido pela Câmara Municipal de Sabugal no carismático terreiro do castelo de Alfaiates, mesmo ao lado da igreja medieval que assistiu ao casamento da Infanta D. Maria, filha do rei D. Afonso IV, com Afonso XI de Castela.
A autarquia sabugalense gostou tanto da colorida "invasão" que prometeu uma capeia arraiana numa próxima paragem!
Ainda por este concelho de território quase todo ele conquistado por D. Dinis em 1297 com o Tratado de Alcanices, oportunidade de conhecer o forcão e descobrir a tal forma singular de tourear – a capeia - com uma enorme armação de troncos que deve ser movimentada com destreza por 20 a 30 homens para evitar as arremetidas do touro, bem como os castelos de Sabugal, com a única torre de menagem pentagonal existente em Portugal e de Sortelha onde o Mototurismo do Centro assinalava mais uma marca na tarjeta plástica...
Felizmente com temperaturas já mais amenas, a viagem continuou até Castelo Branco mas não sem antes passar no Fundão, cidade da Cova da Beira de afamadas cerejas e berço do padre José Fernando, figura de enorme consenso no meio motociclístico e que, pela primeira vez, integrou a caravana do Lés-a-Lés, deslocando-se propositadamente dos Estados Unidos onde, há vários anos, trava acirrada batalha contra o cancro.
Filho afamado tem também Alcains – o general Ramalho Eanes, Presidente da República entre 1976 e 1986 – por onde os Motociclistas Sem Fronteiras marcaram presença, notada por toda a plêiade de participantes, antes da entrada em Castelo Branco, rumo ao palanque, instalado entre a Câmara Municipal e o Tribunal.
Onde a vasta comitiva do Club Turismoto, de Valladolid, responsáveis pela organização da concentração invernal Los Pinguinos, se fez ouvir de forma estrondosa, inclusive com direito a apoio de claque organizada. Alegria contagiante e que sublinhava o prazer dos espanhóis na descoberta de um País tão próximo e com tantas diferenças.
Bem mais discretas, três mulheres continuavam, entretanto, a altruísta tarefa iniciada na véspera e que haveria de durar até Olhão da Restauração. Delfina Brochado, Paula Soares e Teresa Sousa – em substituição de última hora da principal impulsionadora do projecto, Catarina Almeida, hospitalizada poucos dias antes do arranque da maratona – continuaram, no centro albicastrense, a distribuir, em mão, os 2000 folhetos alertando para um problema que é a forma de cancro mais frequente nas mulheres portuguesas e que só a detecção precoce pode aumenta significativamente a possibilidade de cura. Iniciativa destinada a «Sensibilizar de Lés-a-Lés» cumprindo «1000 quilómetros contra o cancro da mama», levando às aldeias mais recônditas o conselho, o alerta para, anualmente, efectuarem acções de rastreio e despistagem de eventuais problemas.
Ponto final, em Castelo Branco, numa das mais bonitas etapas de sempre da maratona mototurística que, anualmente, atravessa o País de um extremo ao outro, com o pensamento num dia que prometia, de tão exigente e duro, ficar na história do Lés-a-Lés.
2.ª etapa, de Castelo Branco a Olhão, passando por Mourão (Luz)
Alentejo interminável sob calor tórrido
A madrugadora partida foi dada, para os primeiros, às seis horas e meia, ainda o sol não tinha aparecido no horizonte. A bem dizer, manteve-se estranhamente tímido durante todo o dia, obscurecido por providenciais nuvens que limitaram o calor de um dia que, ainda assim, se revelou muito quente, escaldante mesmo, com os termómetros a rondarem os 40.º.
E que cumpriu a promessa anunciada no road-book de ligar Castelo Branco a Olhão, ao longo de 508 quilómetros, atravessando o Alentejo interminável sob calor tórrido. Ainda fresca na passagem pelas Portas do Ródão, onde o Tejo marca a fronteira natural com o Alentejo; aceitável na redescoberta do menir da Meada que, com sete metros de altura, é o maior da Península Ibérica, a temperatura foi subindo à medida que a caravana avançava pelas rectas alentejanas, deixando para trás o Parque Natural da Serra de S. Mamede.
Pelo caminho ficaram Flor da Rosa e o seu belo mosteiro transformado em Pousada; o Crato e a belíssima varanda do Priorado; Fronteira, a das 24 Horas de TT e de dois castelos em ruínas; Veiros e seu belo pelourinho em mármore. Aqui, bem no centro da vila alentejana, o MC Almada fiscalizava com um dos vinte controlos secretos. A pequena e alva povoação conheceu uma animação pouco vista durante as horas de passagem do Lés-a-Lés Moviflor!
Mas o percurso mandava avançar sempre para sul: Borba e as suas marmoreiras, bem diferentes das pedreiras visitadas na véspera em Vila Pouca de Aguiar; Vila Viçosa e o imponente Palácio Ducal e o único castelo com fosso em Portugal. O MC Borba também já tinha controlado os mototuristas que, com a tarjeta cada vez mais aliviada continuavam a maratona rumo à Ria Formosa. Na viagem ao Alentejo profundo, alguns tentavam recuperar o tempo perdido em paragens descuidadas, enquanto outros, mais conscientes ou, pura e simplesmente limitados pela mecânica, tratavam de apreciar com mais calma o Alandroal e o seu centro histórico ou Mourão e o último castelo antes do ligeiro almoço na nova Aldeia da Luz, servido sob a forma de uma salada fresca.
Foi o caso dos Novos Aventureiros, a mais jovem equipa de sempre no Portugal de Lés-a-Lés, formada por Carolina Silva e Fábio Pereira, ambos com 15 anos, e com a presença dos pais sempre por perto, cujos pequenos scooters de 50 cc Kimco Agility e Yamaha JogR, aconselhavam velocidades mais comedidas. Aliás, tal como a Ariel KG de José Martins Paulino e a Norton 7 de Alfredo Jorge Simões, duas motos de 1952, ambas com motor de 500 cc. E cujos únicos problemas se resumiram a maleitas de somenos importância e prontamente resolvidos com recurso a tecnologias condizentes com a época de tão vetustas senhoras. Assim, o escape solto pelas pancadas causadas por tanta pedra em alguns troços de terra, que partiram os apoios, foi reparado com um bocado de arame...
Almoço comido (a Câmara Municipal de Mourão, Junta de Freguesia local e Grupo Motard de Mourão esmeraram-se para retemperar a caravana) e com o calor a aumentar, regresso à estrada para deitar uma olhadela à maior central solar fotovoltaica da Europa, com 262 080 painéis solares instalados mesmo à saída da Amareleja, e rumar a Moura para beber... uma água na sede do Moto Clube local, passando ao lado do monumental aqueduto e nora de Serpa, antes da descida ao Pulo do Lobo. A mais alta e impressionante cascata do sul de Portugal, com caminhos de terra onde até odakariano Paulo Marques, pela segunda vez no Lés-a-Lés com a fiel Honda Varadero, transpirou mais do que em muitas etapas de Marrocos ao Senegal...
Com África cada vez mais perto, a passagem em inédito porto do Vascão, ribeira "fronteiriça" e tradicional entrada do Lés-a-Lés no Algarve, revelou-se bela mas seca. No entanto, a imaginação e alegria dos controladores do MC Albufeira criou um "posto alfandegário" no meio da água, obrigando os acalorados participantes a molharem-se até ao joelho para serem controlados. Agradecidos, muitos até se banharam vestidos entre a natureza do espaço, onde se viam vestígios de lontra, cágado, guarda-rios, borrelho e cobra-de-água...
Já no coração da serra do Caldeirão, após Cabeça Gorda, o turístico road-book apontou para Várzea da Azinheira e uma sucessão de vales de mais ribeiras secas, com os últimos quilómetros em piso de terra a fazerem as delícias dos condutores das polivalentes trail, com tamanho entusiasmo traduzido em monumental poeirada para todos os que seguiam atrás... Mas que, tal como os restantes condutores, sonhavam essencialmente em ver Olhão, curiosamente com o palanque mais próximo da água de todas as edições.
Mas, para isso, faltavam dois controlos muito especiais! Na ponte romana de Quelfes e na loja da Moviflor.
No primeiro local, com alicates entregues ao Moto Convívio de Olhão, referência histórica à vitória, em 1808, de um grupo de pescadores, mal armados e sem preparação, frente ao exército mais poderoso do mundo de então, marcando o início do fim do jugo napoleónico, abrindo portas à Restauração da Independência. Daí o nome de Olhão da Restauração atribuído pelo rei D. João VI quando, no Brasil, recebeu a notícia transportada por um caíque de 18 metros, tripulado por corajosos pescadores que não hesitaram em atravessar o Atlântico a bordo do pequeno barco de pesca e apenas orientados pelas estrelas.
Sem entrar em especulações pode-se adiantar que só neste sábado, o quase milhar de motociclistas escorrupichou entre 3000 a 5000 litros de água, "secando" muitos cafés alentejanos.
Por fim, o último furo da tarjeta, na loja da Moviflor que voltou a assumir o papel de principal patrocinador de um evento único no Mundo e que, este ano, foi marcado pela intensa canícula que ampliou – e de que maneira – as dificuldades desta travessia de Portugal à moda antiga.
Com arreliadores problemas mecânicos ou até confessado cansaço, nem todos arribaram à Ria Formosa. As quase 30 horas das etapas e prólogo deixaram marcas nos menos preparados. Mas mesmo os desistentes asseguraram que se colocarão em forma para a edição de 2010.
Já os resistentes, sobre o palanque final, quando questionados pelo que mais os marcaram no trajecto, referiam-se com boa memória de Boticas e suas aldeias. Ou então o contraste com a serra do Caldeirão, sem esquecer a monumentalidade das aldeias históricas da Beira.
As características do Portugal de Lés-a-Lés tornam ainda mais saboroso o desafio de uma aventura que não pára de granjear fervorosos adeptos, não só na comunidade motociclística nacional como, cada vez mais, internacional (como comprova o facto de Alcesto Santiago ter vindo de propósito de Angola para se tornar o primeiro africano no evento).
Adeptos de todos os quadrantes da sociedade, desde médicos a carpinteiros, de mecânicos a advogados, de pedreiros a empresários, de pilotos a... políticos. Sim, também políticos! E logo dois nomes significativos na luta pelos interesses dos motociclistas na Assembleia da República em estreia absoluta. Rodrigo Ribeiro, ex-deputado do PSD e grande impulsionador da lei dos rails, e Miguel Tiago que, desde a bancada do PCP, lançou, a proposta de Lei que permitirá aos detentores da carta de condução automóvel utilizar motociclos até 125 cc e potência limitada.
Dupla mediática que foi a última a chegar a Olhão, ponto final de «um trajecto muito bem escolhido num ambiente único» que deixou a Miguel Tiago o desejo de regressar, enquanto Rodrigo Ribeiro sublinhou tratar-se de «um óptimo exemplo de qualidade organizativa». E que, por isso, mereceu mesmo um slogan, urdido na hora, e que só poderia sair de um político. «Prefiro ser o último a acabar o Lés-a-Lés do que o primeiro... a ficar em casa!»
Publicado em 16/11/2010
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